Seis dos 34 municípios da Bacia do Rio Pará têm água contaminada

11/03/2022 - 18:55

Mercúrio, níquel, antimônio, chumbo, trihalometanos (como clorofórmio) e nitrito. Pelo menos uma – às vezes duas – dessas substâncias vem, em concentração superior ao máximo determinado pelo Ministério da Saúde, na água que sai das torneiras de quase 20% das cidades banhadas pelo Rio Pará e seus afluentes.

A estatística é ainda pior se considerarmos apenas quem cumpriu a obrigação de informar anualmente o resultado dos testes de qualidade da água tratada. Nesse caso, a contaminação alcança 31,5% dos municípios da bacia, que tem apenas 13 cidades dentro do limite de segurança.

O panorama foi revelado em estudo da organização Repórter Brasil, que analisou dados do Sisagua, Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano, de 2.924 cidades brasileiras, de 2018 a 2020. Veja o mapa completo!

Onde mora o perigo

As análises de Araújos, Cláudio, Perdigão e Pitangui apontaram a presença de uma substância nociva acima dos limites sanitários. Em Martinho Campos e Pedra do Indaiá, duas.

O cloreto de mercúrio é classificado como possivelmente cancerígeno pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês). A exposição prolongada ao mercúrio afeta os rins e pode alterar o tecido testicular, aumentar taxas de reabsorção e gerar anomalias no desenvolvimento. Seus compostos inorgânicos são aplicados em processos industriais e na produção de outras substâncias químicas. O metilmercúrio, usado em garimpos de ouro, é o mais tóxico e provoca danos principalmente ao sistema nervoso, podendo causar até a morte.

Os compostos de níquel são classificados como cancerígenos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde. O níquel é empregado principalmente na fabricação de aço inoxidável e na produção de ligas, baterias alcalinas, moedas, pigmentos inorgânicos e de próteses clínicas e dentárias.

O trióxido de antimônio também é um possível agente cancerígeno, segundo a IARC. Os sais solúveis de antimônio, após ingeridos, exercem forte efeito irritante na mucosa gástrica e provocam vômito, cólica, diarreia e toxicidade cardíaca. Os compostos de antimônio são usados na indústria têxtil e na fabricação de plástico, adesivos, tinta, papel, borracha, explosivos e pigmentos. O antimônio forma ligas com outros metais na confecção de chapas de solda, tubulações, rolamentos e armas. Outras variações estão presentes no tratamento de leishmaniose e em produtos veterinários.

O chumbo tem a mesma classificação (potencialmente cancerígeno). De acordo com a EPA, não há nível seguro de exposição ao elemento, especialmente para crianças, que podem desenvolver problemas de comportamento, aprendizado e crescimento. O chumbo é passível de causar danos ao sistema neurológico, hematológico, gastrintestinal, cardiovascular, reprodutivo e renal. As diversas formas do metal são utilizadas como ingredientes em soldas, lâminas de proteção contra raios X, material de revestimento na indústria automotiva, revestimento de cabos, placas de bateria, esmaltes, vidros, componentes para borracha, tintas e pigmentos.

Os trihalometanos são um grupo de compostos químicos e orgânicos que derivam do metano, incluindo substâncias como clorofórmio, possivelmente cancerígeno. A exposição oral prolongada a esta substância pode produzir efeitos no fígado, rins e sangue. Os trihalometanos são utilizados como solventes em vários produtos (vernizes, ceras, gorduras, óleos, graxas), agente de limpeza a seco, anestésico, em extintores de incêndio, intermediário na fabricação de corantes, agrotóxicos e como fumigante para grãos.

O nitrito é tido como provavelmente cancerígeno para o ser humano pela IARC. Ele é utilizado como conservante de carnes e embutidos e é encontrado na água potável, no solo, nos vegetais e em fertilizantes, o que aumenta a exposição dos humanos a essa substância.

 

Mapa apresenta pontos onde a água coletada estava contaminada no momento da coleta

Luz amarela

As empresas de saneamento – estaduais, autárquicas ou concessionárias privadas – são obrigadas a tornar pública a informação sobre qualquer substância que esteja acima dos limites legais, mas isso simplesmente não é feito.

Contraditoriamente, grande parte da contaminação vem de substâncias geradas no próprio processo de tratamento, caso dos trihalometanos, adotados na desinfecção da água captada, e do cloro, que interage com algas, esgoto e agrotóxicos e cria subprodutos nocivos à saúde.

Para o professor Aníbal Santiago, da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), doutor em Engenharia Sanitária e Ambiental, “luzes amarelas têm que ser acionadas”. “O ovo está rolando na mesa e todo mundo olhando ele se espatifar”, alerta, mas admite que ainda prefere “usar uma água que vem do sistema do que uma água mineral sem selo ou certificado”.

Para Santiago, o efeito de todo remédio “varia conforme a dose. Se usado acima dos limites, vai dar problema”. “Tem como corrigir”, diz: “Se toda água estivesse contaminada, por exemplo, por agrotóxicos, pesticidas, teria que mexer na bacia de contribuição”, empreitada muito mais complexa.

O professor vê com receio o fato de que 48% das cidades brasileiras tenham deixado de prestar informações ao Sisagua: “É uma obrigação negligenciada pelos municípios, pelos sistemas de saúde em todos os níveis e também pelo Ministério Público”. Afirma, porém, que o buraco é “mais embaixo”, pois “cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso sequer à água tratada”. A esse número escandaloso, junta-se outro: 100 milhões não têm acesso à coleta nem ao tratamento de esgotos.

Alarme

O também professor da UFOP, Guilherme Cunha Gomes, doutor em Engenharia Civil, avalia como “alarmantes” os dados divulgados e “muito heterogênea” a distribuição de casos de contaminação, por conta da grande variação das formas de uso e ocupação do solo.

Gomes chama a atenção para o uso indiscriminado de agrotóxicos, “altamente poluentes, já banidos em muitos países”, mas que podem ser “adquiridos aqui em qualquer loja do ramo, sem controle”, e para “as substâncias químicas encontradas nas estações de tratamento”, que “podem causar câncer” e mesmo “mutações genéticas, no caso das radioativas”.

O tempo de exposição ao produto é determinante, explica Gomes: “Não é porque ingeriu uma vez que vai causar doença grave. Mas quanto mais a gente beber essa água contaminada, pior para a saúde”.

O professor aponta outro dado “muito preocupante”, a inconsistência e mesmo a falta de dados enviados pelos municípios: “Podemos ter um cenário ainda pior”.

Gomes faz uma constatação e um apelo: “O Brasil está longe de ter um padrão de qualidade de água como os países desenvolvidos. Temos um longo caminho a percorrer. Precisamos superar a falta de educação de parte da população e o descaso do poder público com nossos recursos hídricos, o bem mais precioso a proteger”.

Precariedade

A doutora em Química, professora da Universidade Federal de São João Del Rei (Campus Centro-Oeste, em Divinópolis) e conselheira do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará, Beatriz Alves Ferreira, traz uma lente que vê outro problema: a precariedade enfrentada por muitas prefeituras para cumprir as obrigações estabelecidas pela portaria do Ministério da Saúde (GM/MS Nº 888, de maio de 2021).

Segundo Ferreira, “a maioria dos municípios realiza parcialmente a análise da qualidade da água para consumo humano”, abrangendo menos substâncias do que o determinado, por falta de infraestrutura. Ela vai adiante: “O plano de amostragem muitas vezes é inadequado. Teria que abarcar as áreas urbana e rural, mas muitas prefeituras só fazem na urbana”. Além disso, prefeituras costumam realizar a análise “na saída da estação de tratamento de água e chamada na ponta de rede, deixando sem testagem todas as demais regiões”. Com isso, quem recebe água no meio do caminho pode estar consumindo um produto fora dos padrões estabelecidos na legislação vigente.

E acrescenta: “A água tem que ser avaliada do ponto de vista químico e microbiológico. Na água para consumo humano, é imprescindível que haja ausência de coliformes termotolerantes, principal causa de doenças diarreicas agudas na população. Essa análise microbiológica também costuma ser deficiente, principalmente nas chamadas soluções alternativas coletivas de abastecimento, como poços artesianos, cisternas, nascentes etc.

 

Assessoria de Comunicação do CBH do Rio Pará
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Edson Oliveira; Site da Repórter Brasil (Divulgação)

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará

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