Grupo indígena busca na OIT o amparo que por aqui anda em falta
Reunidos em três pequenas aldeias – Capão do Zezinho, na margem esquerda do Rio Pará, município de Martinho Campos; Fundinho e Pindaíba, na margem direita, município de Pompéu –, o povo Kaxixó segue em luta pela demarcação de suas terras originais.
Otávio Junior da Costa, o Otávio Kaxixó, 28 anos, no 8º período do curso de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), é quem fala: “O nosso Rio Pará é o pilar principal da nossa luta, porque dele a gente extrai alimento, diversão, prazer; nele fazemos nossos rituais. Um rio que corta a nossa comunidade, uma vida que atravessa outras vidas. A poluição do rio entristece a gente. Tem quem jogue dejetos de suínos no rio, que também sofre com os eucaliptos à beira das nascentes”.
Otávio lamenta os “montes sagrados dilapidados, como o Cruzeiro do Urubu, onde os antigos faziam seus ritos e trocavam ideias, mas a prefeitura vai lá tirar cascalho, dilapidando o monte, destruindo tudo que é marca do nosso povo”.
O futuro médico, primeiro do seu povo na profissão, ressalta: “Antigamente podíamos nos banhar nus, hoje temos medo de que nossos corpos sofram. Canoas, anzóis, acidentes, motores. Já sofremos ataques, agressões. Pensam que nossos ritos são bruxarias. Um momento de festa vira guerra. Não fazemos mais os rituais na beira do rio. Porteiras ficam trancadas para impedir nosso acesso”.
DIREITO VIOLADO
Cacique Nilvando diz que nação Kaxixó busca internacionalmente o amparo institucional que aqui lhes tem faltado.
O Cacique Nilvando José de Oliveira, da maior das aldeias, Capão do Zezinho, confirma: “Não podemos largar mais nada lá na beira do rio; antes deixava barco, até motor. Podia deixar até dinheiro, agora não”. O vizinho Rio Paraopeba “não tem data para voltar ao normal” e o Rio Pará sobrou como único ímã a atrair pescadores, loteamentos irregulares e a fornecer a água que já não pode ser captada do rio comprometido pela tragédia de Brumadinho.
A batalha pela demarcação segue enfrentando toda sorte de obstáculos. Reconhecidos oficialmente pela Funai (Fundação Nacional do Índio) como grupo indígena em 2001, viram os 54 mil hectares reivindicados encolherem para 27 mil, depois para 13 mil e agora para cerca de 5,5 mil hectares, embora até hoje não homologados. Na prática, as três aldeias juntas não ocupam mais do que seis hectares, mesmo assim como posseiros. O restante das terras está na mão de fazendeiros e condomínios.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão e a Defensoria Pública Estadual propuseram a realização de audiência pública, ainda sem data definida, para a qual serão intimadas as prefeituras de Martinho Campos e Pompéu e o governo do estado, autores de processo que pede a anulação da demarcação.
Jane Kaxixó teme pela biodiversidade e saúde ambiental das lagoas marginais.
Liderjane Gomes da Mata, a Jane Kaxixó, revela outra preocupação: “Vamos perder muitas espécies de peixe; os ovinhos ficam na lagoa, um berçário para fugir do peixe grande. Na hora que ela enche de novo, eles voltam para o rio já mais crescidos. Não vai ter vazão para encher e vamos ficar sem muitas espécies”. Ela denuncia: “Estamos ficando doentes aqui sem o contato com o rio”.
Essa constatação não vem de hoje. Em 2017, o Ministério Público Federal (MPF) registrou: “Os Kaxixó, atualmente,
vivem em um contexto em que veem paulatinamente seu território tradicional ser tomado por empreendimentos ligados ao cultivo do eucalipto e à pecuária e por loteamentos ilegais nas margens do Rio Pará”.
No mesmo documento, o MPF pediu à Justiça Federal que obrigasse os dois municípios a implementarem política pública de promoção e prevenção de saúde mental dos Kaxixós, “devendo, inclusive, prestar atendimento psicológico e de assistência social permanente aos membros da etnia, que ora enfrentam situação de sofrimento e adoecimento psíquico”.
Vista aérea do Rio Pará próximo à reserva indígena Kaxixó.
OIT
Recentemente, as três aldeias aprovaram o Protocolo de Consulta Prévia do Povo Kaxixó, baseado na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Essa Convenção resguarda o direito à consulta livre e informada antes de qualquer ação de governos, empresas ou particulares em suas terras.
O Cacique Nilvando sabe o que desejam: “É um instrumento de autodeterminação. Não queremos mais que os governos e latifundiários tomem decisões sem nos ouvir e negociar. Tudo que for feito nessa terra eles terão que nos consultar”. A medida abre caminho para que a nação Kaxixó busque internacionalmente o amparo institucional que aqui lhes tem faltado.
A QUEDA DO CÉU
Resultado da luta coletiva em busca do reconhecimento como atingidos pelo rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho, o povo Kaxixó foi uma das últimas comunidades a serem inseridas no contexto da reparação e a primeira a receber o cadastramento do Programa de Transferência de Renda na chamada região 5, em que o Paraopeba deságua na represa de Três Marias.
O que sobrou dos Kaxixó soma hoje aproximadamente 400 almas, das quais apenas 108 vivem dentro das aldeias. O restante se dispersou por cidades da região e mesmo por outros estados.
A nação do tronco macro-jê habitava, segundo o cacique Djalma, falecido em 2011, desde as imediações da Serra do Curral, em Belo Horizonte, até “Pará de Minas, Pitangui, Pompéu e Três Marias”.
Otávio aposta na transmissão da cultura e das tradições: “Se nossos mais jovens não entendem de onde vieram, tudo se acaba. Se a gente perde o nosso rio, perde a força da luta. Queremos proteger. A gente não é o regresso, como dizem por aí. Nós somos o progresso”.
À moda do líder yanomami Davi Kopenawa, Otávio ensina: “A terra está sangrando, e eles estão deixando a terra sangrar. Se não ouvirem isso, vai tudo acabar. É preciso fortalecer a terra para o céu não cair”.
Kaxixós estão hoje reunidos em três pequenas aldeias: Capão do Zezinho, na margem esquerda do Rio Pará, município de Martinho Campos; Fundinho e Pindaíba, na margem direita, município de Pompéu. Vista aérea da comunidade indígena Kaxixó, pertencente ao município de Martinho Campos.
Assessoria de Comunicação CBH Rio Pará:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Léo Boi