Revista Rio Pará nº 04: Seco de corpo e alma

21/11/2025 - 12:48

Crise hídrica no Rio Pará afeta ecossistemas, abastecimento e a vida de quem nasceu e vive às suas margens

Imagina nascer e crescer ao redor da água. Criar laços, costumes e crenças moldados pelo curso que corre ao lado da sua casa, quase como uma entidade viva. Com o tempo, porém, perceber que aquilo que sustentava seu modo de vida, sua economia e até o seu emocional vai se esgotando, diminuindo. Essa é a relação que Cristina Maria Benícia, moradora de Velho do Taipa – povoado localizado na divisa entre os municípios de Conceição do Pará e Pitangui –, mantém com as águas do Rio Pará. De um passado de abundância, ela passou a conviver frequentemente com episódios de seca e, hoje, testemunha um problema ecossistêmico que ameaça não apenas o rio, mas toda a vida que dele depende.

Há mais de 56 anos vivendo às suas margens, Cristina descreve uma ligação tão profunda com o Rio Pará que cada degradação e sinal de escassez se tornam uma ferida pessoal. “Eu nasci no meio do Rio Pará. Ele dá de beber, dá banho, sustenta a vida. Ver essa destruição dói demais, é como se fosse diretamente comigo. Muitos riem quando a gente fala disso, mas quem depende da água sabe o que significa. O rio não aguenta mais tanta invasão e assoreamento. A natureza já está cobrando”, afirma.

Cristina Maria Benícia, moradora do Velho do Taipa, vive há mais de cinco décadas às margens do Rio Pará e sente de perto os efeitos da escassez hídrica.

 

Velho do Taipa é símbolo de um cenário de escassez que se estende por toda a bacia do Rio Pará. Em 2025, pelo segundo ano consecutivo, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) emitiu, a partir da estação de monitoramento localizada no distrito, o alerta de “Situação Crítica de Escassez Hídrica Superficial”. A medida impôs restrições, válidas por 45 dias, à captação de água para diferentes usos em diversos municípios da bacia.

A decisão ocorreu em função do prolongado período de estiagem e da baixa vazão do rio. Segundo o IGAM, a média das vazões diárias em sete dias consecutivos ficou abaixo do limite mínimo, o que caracteriza a situação crítica de escassez hídrica, exigindo ações imediatas para mitigação dos impactos.

Com a situação crítica de escassez hídrica formalmente decretada, as outorgas vigentes na bacia sofreram redução de 20% no volume diário destinado ao consumo humano, à dessedentação animal e ao abastecimento público; 25% no volume outorgado para irrigação; 30% para captações voltadas ao consumo industrial e agroindustrial; e 50% para as demais finalidades, exceto os usos não consuntivos.

Os municípios diretamente afetados incluem Igaratinga, Carmópolis de Minas, Perdigão, Pará de Minas, Divinópolis, Passa Tempo, Pitangui, Itapecerica e Carmo do Cajuru. Além disso, o IGAM suspendeu a emissão de novas outorgas de uso consuntivo, bem como solicitações de aumento de vazão ou volume captado nas outorgas já existentes.

O reflexo dessa crise Cristina Maria Benícia sente de perto. “Eu fico muito preocupada com a situação, e parece que só eu falo com os órgãos governamentais e ambientais. Muita gente depende dessa água para beber e sobreviver, mas continuam acontecendo invasões e desmatamento. Eu cresci aqui e vejo a natureza de um jeito que muitos não enxergam”, lamenta, mostrando como a crise hídrica é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva.

MENOR QUANTIDADE, PIOR QUALIDADE

A redução do volume de água não afeta apenas a quantidade disponível para consumo humano, irrigação e uso industrial. Segundo a bióloga Ludmila Silva Brighenti, professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e conselheira do CBH do Rio Pará, a diminuição do fluxo natural das águas intensifica a concentração de poluentes e resíduos presentes nos rios, como esgoto clandestino, efluentes industriais e de atividades agropecuárias. “Com o volume menor, tudo o que já está dissolvido na água fica mais concentrado, o que piora a qualidade e exige muito mais do tratamento para abastecimento e usos diversos”, explica Brighenti. Esse efeito concentrador compromete a saúde das comunidades que dependem diretamente do Rio Pará.

Além da contaminação, a menor vazão favorece a proliferação de plantas aquáticas invasoras e algas, que se beneficiam do excesso de nutrientes concentrados na água. O crescimento descontrolado dessas espécies altera a aparência e o odor do rio, além de aumentar a matéria orgânica disponível, que é consumida por microrganismos que reduzem o oxigênio presente. O resultado são impactos graves para os ecossistemas, incluindo a mortandade de peixes e desequilíbrios que afetam toda a fauna e flora aquática, tornando o rio menos resiliente e mais vulnerável nas próximas estiagens, algo que vem ocorrendo em diversos trechos da bacia.

Bióloga Ludmila Brighenti, professora da UEMG e conselheira do CBH do Rio Pará, alerta para os impactos da seca na qualidade da água e nos ecossistemas aquáticos

 

SÓ CHUVA BASTA?

Após mais um longo e severo período de estiagem, a recuperação do Rio Pará depende do padrão das chuvas nas próximas estações. “O ideal é que a chuva seja contínua e gradual, não muito concentrada em poucas horas, para repor as reservas hídricas, abastecer nascentes e manter o volume de água a médio e longo prazo”, explica Brighenti.

Além da chuva, a preservação do solo e da vegetação da bacia é fundamental. “Quando a água cai sobre solo impermeável, como áreas com concreto ou asfalto, ela escoa rapidamente e não contribui para a recarga dos rios”, alerta a professora. A proteção dos ecossistemas e o manejo adequado do solo são essenciais para reduzir os impactos da seca e evitar novos alertas de escassez hídrica.

Embora nos últimos anos Minas Gerais tenha enfrentado longos períodos de estiagem, a primavera deste ano já apresentou índices de chuva mais elevados desde o final de setembro e início de outubro, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Esse cenário mais favorável traz a esperança de que a reposição gradual das reservas hídricas contribua não apenas para a quantidade e a qualidade da água, mas também para a recuperação dos ecossistemas da bacia do Rio Pará – o que representaria um alívio e uma alegria para Cristina, do Velho do Taipa, e para todos os ribeirinhos e usuários que dependem do rio.

Trecho do Rio São João, afluente do Rio Pará, durante a seca de 2024: volume reduzido e leito exposto, reflexo de um cenário crítico em toda a bacia.

 


Assessoria de Comunicação do CBH do Rio Pará:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: João Alves
Fotos: Léo Boi, Fernando Piancastelli, Helenir Gaipo e João Alves

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará

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