Um povo em busca de sua história

06/05/2022 - 13:55

Um “segredo encapado”, sumido nas terras expropriadas, na diáspora, na tradição esgarçada, na escravização ancestral e moderna. Dentro dele estão a história, os nomes e a língua Kaxixó, nação do tronco macro-jê que habitava, segundo o cacique Djalma, da Aldeia Capão do Zezinho, falecido em 2011, desde as imediações da Serra do Curral, em Belo Horizonte, até “Pará de Minas, Pitangui, Pompéu e Três Marias”.


Glayson Ferreira, cacique da Aldeia Fundinho, outra das três que estão sendo revividas desde os anos 1980, e conselheiro do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Pará, confirma a extensão do território dos Kaxixós em tempos remotos, antes da chegada dos bandeirantes e, um século mais tarde, de Joaquina de Pompéu.

Os Kaxixós só obtiveram reconhecimento oficial pela Funai (Fundação Nacional do Índio), como grupo indígena, em dezembro de 2001. Sua luta atual é pela posse das terras tradicionais e pelo resgate de sua cultura. Os 54 mil hectares (ha) reivindicados inicialmente encolheram para 27 mil ha, e estão agora em cerca de 5,5 mil ha, até hoje não homologados. Na prática, as três aldeias juntas não ocupam mais do que seis hectares, mesmo assim como posseiros. O restante das terras está na mão de fazendeiros e condomínios, ou arrendadas para o plantio de eucalipto.

Quatro séculos de martírio

De acordo com o site Povos Indígenas do Brasil (PIB), iniciativa da ONG Instituto Socioambiental (ISA), “a preação de índios (aprisionamento para escravização) motivou as primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações do Rio Pará, ainda no século 17, havendo referências de expedições de apresamento nas cabeceiras do São Francisco e entre este e o Rio das Velhas a partir de 1640. Teria sido com essas bandeiras que os Kaxixós tiveram os primeiros conflitos, resistindo à fixação desses invasores no seu território”. Os quartéis e aldeamentos dizimaram, deslocaram ou dispersaram os indígenas por fazendas e povoados que iam surgindo, onde muitos se tornaram trabalhadores braçais.

A essa primeira grande dispersão seguiu-se outra, por volta de 1770. É quando se instala nas redondezas Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco Souto Mayor de Oliveira Campos, a Joaquina de Pompéu, que tinha por uma das alcunhas o apelido de Sinhá Braba, dando a medida de sua ferocidade, e cujo marido, o capitão Inácio de Oliveira Campos, teria levado consigo, ao deixar Pitangui, algo perto de mil africanos e descendentes escravizados e um grande contingente de indígenas Carijó igualmente cativos, subjugando os Kaxixós e se apossando de suas terras.

Liderjane Gomes da Mata, a Jane da Aldeia Capão do Zezinho, conta o que ouviu dos mais velhos: “Um grupo foi pra Goiás, porque aqui os fazendeiros não davam serviço. Só uma família ficou. Depois alguns voltaram pra cá, outros foram para as cidades da região. Joaquina de Pompéu mandava matar os índios, mas alguns acabaram se casando com parentes dela, e começou a miscigenação Fazendeiros pegavam as mulheres, era um namorar sem vontade de uma das partes, bem que à força mesmo, obrigadas a ficar com os patrões. Até há pouco isso acontecia. Minha tia mesmo foi obrigada a ficar com o patrão, e ainda lavava roupa, tocava roça, buscava água na cabeça longe e não ganhava nada. Era bem que escravizado. Eles achava normal”. A mistura étnica se estendeu aos relacionamentos com descendentes dos Carijó, procedentes de São Paulo no século 18, e dos africanos escravizados que trabalhavam nas fazendas.

Voz roubada

Talvez a expressão “direito à voz” nunca tenha sido tão milimetricamente ajustada quanto no caso dessa nação. Naquelas circunstâncias históricas, o mero ato de falar a língua nativa tornara-se um enorme perigo. Jane, esposa do vice-cacique da Aldeia Capão, Altair Teodoro da Silva, relata: “Os antigos bisavós, tataravós, não falavam português, e os jagunços caçavam, exterminavam quem falava a nossa língua. Muitos pararam de falar, os pais pararam de ensinar os filhos”. Se não conseguiam falar o idioma do invasor e não podiam falar o próprio, muitos “ficavam mudos”, diz Jane, que constata: “Perdemos a língua materna”.

Hoje, graças aos esforços da comunidade, movida à sede de reencontrar a história, e ao trabalho de antropólogos e linguistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), algumas palavras estão sendo recuperadas, depois de identificado o tronco linguístico macro-jê. Ibitira, distrito de Martinho Campos, significa flor. Pitangui, pássaro. Rio, Inyamahu (pronuncia-se Iniamaru, conforme Ronilda Balbina da Silva Oliveira, professora de Cultura na Escola da Aldeia).


Trabalho desenvolvido junto à UFMG ajudou a recuperar palavras da língua nativa dos Kaxixós


Sobrevivendo

As três aldeias – Capão do Zezinho, nome dado a uma planta que fornece tinturas, como Jenipapo e Urucum, na margem esquerda do Rio Pará, município de Martinho Campos; e Fundinho e Pindaíba, ambas na margem direita, município de Pompéu – reúnem hoje entre 100 e 170 pessoas – os números variam conforme a fonte -, mas eram mais de 300 em 2014, sinal da itinerância e rotatividade dos indígenas sem-terra.

O cacique Djalma, no vídeo “Casca do Chão”, de 2008, dos Kaxixós Glayson e Jaciara, realizado com apoio da UFMG, cita 15 sítios arqueológicos encontrados na região, sete pré-coloniais e oito históricos, com milhares de anos. O cacique mostra diversos objetos dos Kaxixós recolhidos nesses locais, compostos por grandes fragmentos cerâmicos e estruturas de fornos, além de instrumentos líticos polidos, como machadinhas, polidores, urnas funerárias, batedores, quebra-cocos. pilões e mãos-de-pilão, entre outros. Ele ensina ainda a Dança do Jacaré, da época das festas, de comer mandioca e paçoca.

Grande parte da comunidade se identifica como católica, eis que sua religião tradicional foi proibida, assim como a língua e até o próprio nome da tribo desde a época de Joaquina de Pompéu.

A pesca e a agricultura familiar de subsistência, principalmente cultivos de feijão, arroz, milho, algodão, mandioca, cará e amendoim, suprem parte das necessidades, assim como a criação de porcos e galinhas.

O Cacique Nilvando José de Oliveira, da Aldeia Capão do Zezinho, é pedreiro e trabalha onde tem serviço: “Caça quase não tem. São só três pescadores profissionais, e muitos amadores, pro sustento. Sobrevivência graças a Deus tá dando”.

Diversos Kaxixós trabalham nas fazendas próximas e alguns, nos equipamentos públicos disponíveis, como a Escola e o Posto de Saúde Indígena – um PSF específico de responsabilidade federal, por se tratar de um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Professores, enfermeira, técnica de Enfermagem, agentes de saúde e demais servidores são indígenas, como Daniela, filha do cacique e auxiliar de dentista. Vários membros do grupo têm curso superior, seja pelo Curso de Formação para Educadores Indígenas (FIEI) da UFMG ou em faculdades vizinhas.

Cacique Nilvando. 
Foto: Otávio Kaxixó

Mesmo contidos num miúdo pedaço de terra, os Kaxixós continuam enfrentando pressão e violência, como as ameaças de envenenamento das águas consumidas nas aldeias. “Muitos queriam ir embora com medo”, diz Jane. Glayson, professor aposentado da escola comunitária, formado em Pedagogia pelo programa da UFMG, confirma os conflitos com fazendeiros, que “vendem áreas à margem do Rio para a instalação de vários condomínios”. O fato foi denunciado ao CBH do Rio Pará.

Embora tenham sido reconhecidos os 5,5 mil hectares como território Kaxixó, com publicação no Diário Oficial da União, como explica Glayson, falta concluir um processo parado desde 2013, que inclui delimitação, avaliação e indenização dos proprietários atuais. Nilvando dá o motivo do atraso: “Com esse governo que tá lá não consegue terra”.


Após reconhecimento da União, regularização do território Kaxixó ainda precisa de avanços


Inyamahu

O nome Kaxixó para rio, ou especificamente para o Rio Pará, carimba uma relação íntima com as águas. É Jane quem fala: “O rio pro indígena é vida. Muitos aqui estão no psicólogo, no psiquiatra, porque a depressão é muito grande, a ansiedade. Estamos presos aqui na Aldeia. Antes fazia caminhada, passava o fim de semana acampando, pescando, mas fazendeiro fechou a porteira pra nós e pros turistas na pandemia. Quando a gente chega lá, tá cheio de gente e de porcaria. E ainda passa barco a motor, tem anzol, coisas perigosas para as crianças, e os pescadores de fora falam que não pode nadar porque espanta os peixes”.

Glayson detalha as agruras com a expansão imobiliária: “Eles fazem as casas, muito barulho, espantam tudo, destroem a água, põem fogo, deixam aceso, vem o vento e espalha. A natureza sofre. O indígena tem consciência de preservar”. Não deve ser à toa que, como anotou o site do PIB, os Kaxixós se consideram descendentes dos Caboclos d’Água, seres míticos defensores do rio.

Jane observou que “a vazão tá diminuindo muito”, mesmo com a cheia “desproporcional” de janeiro. Ela lamenta: “Vamos perder muitas espécies de peixe, os ovinhos ficam na lagoa, um berçário pra fugir do peixe grande, na hora que ela enche de novo, eles voltam pro rio já mais crescidos. Não vai ter vazão pra encher e vamos ficar sem muitas espécies”.

Sobre a mortandade de peixes ocorrida há menos de um ano e atribuída, pela análise de órgãos oficiais, às águas frias, Jane retruca: “Nós vivemos aqui há centenas de anos. Na época do avô chegava a congelar de frio, hoje a temperatura tá muito acima, e não morria peixe. Vai falar que peixe morreu de frio?” E suspeita: “Indo rio acima, Pará de Minas, Pitangui, tem mineradora, acho que é de ouro”.


Confira mais fotos da região e dos Kaxixós: 


Assessoria de Comunicação do CBH do Rio Pará
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes); Otávio Kaxixó; Arquivo – Kaxixós

 

Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará

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